segunda-feira, 10 de abril de 2017

02 O HOMEM DO MELÃO, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

O HOMEM DO MELÃO, Pag. 12 a 14 

  “Morreu o homem do Me lão”. A frase, repetida por muito tempo, traduzirá o de samparo com que ficaram, de repente, pelo menos quatro famílias irmãs e mais o círculo ampliado de parentes e amigos. Ao mesmo tempo, será a ex-pressão de saudade e de reconhecimento ao velho Matias, o sertanejo forte que dava a impressão de personificar a cordialidade e a bonomia e que, no entanto, surpreendia, às vezes, por uma coragem incomum.

      Corre o mês de março de 1923. O “povo” do Melão está retornando da festa de eleições no Umari, a sede do município. Voltam apavorados, falando baixinho que o bando de Sinhô Pereira, o temível cangaceiro do Pajeú, está atravessando da Paraíba para o Ceará e vai descer até o Melão. Alguns já viram os jagunços amoitados no Canto do Feijão. É um aviso. Sabe-se que eles esperam que as pessoas fujam e deixem casas e pro-priedades livres para o saque e a pilha-gem. Com isso, poupam munição. Os homens do Melão procuram o velho Matias e lhe aconselham que reúna a família e, como outros muitos, se refugie no mato.

     - Não. A minha família vai ficar aqui comigo. Eu não acoito cangaceiro nem volante. Mas também não fiz mal a ninguém. Por isso, não tenho por que me afastar do meu lugar. Não os convido, também não impeço que venham. Vamos recebê-los todos juntos, desarmados, como fazemos com qualquer pessoa. 


    Os bandidos parecem que tomam conhecimen- to dessa disposição de meu pai. Lá pros lados de Cajazeirinha, seis de-les se trancaram num quarto com uma mulher. Após o estupro, a pobre saiu correndo no rumo do Machado de Lavras, e nunca mais teve coragem de retornar ao seio da família. Romualdo Guedes quis se meter a besta com um dos cabras. Os outros chegaram lhe quebraram uma cabaça na cabeça. Vitalina, a velha, perdeu os anéis, os que carregava nos dedos pra começar, arrancados à força, deixando a carne viva. E, meu Deus!, o que foi isso que fizeram ao pobre Ernesto? No meio do terreiro para a mangofa geral, botaram-lhe uma sela e montaram nele, chicoteando-o como a um animal chucro. 
      São oito ou nove horas da manhã. O grupo desfila pela vereda em frente à casa do Mestre Matias. As mulheres rezam e tremem. Zé Matias, o único filho do primeiro casamento, volta do baixio, com uma espingarda de matar passarinho ao ombro, sem se dar conta do perigo. Do bando que passa, três cabras se afastam e tomam a direção de nossa casa. Vêm armados até os dentes, vestidos numa farda de mescla lustrosa.
      Trocam as primeiras palavras com meu pai, que os recebe como impassível, sentado sobre a mesa no meio da sala, a filha Alodias, amparada entre as pernas. Para a surpresa e, mais, para o espanto geral, Mestre Matias reconhece no chefe dos três um homem chamado Ulisses, que, tempos atrás, como tropeiro, havia carregado algodão da bolandeira do Melão.
      - Meu Mestre, vim aqui para lhe dar cobertura, enquanto o bando passa. Mexeu no senhor, mexeu em mim...
      Mesmo com essas palavras, um dos malfeitores, ao ver o paiol de milho rente ao telhado, solta uma pilhéria:
      - Ô vontade comer pipoca!
      E o que tem isso de importante? – rebate-lhe Ulisses.
      O cabra manobra o file. Ulisses responde com o mesmo gesto. O cabra baixa a arma.
      E aquele guarda-chuva no corredor?


      - Está desmantelado – responde minha mãe. Ulis ses repreende também o outro cangaceiro e reco-menda a meu pai que guarde a corona pendurada numa trava de madeira no teto, pois ali está exposta à ambição dos cangaceiros. Outros jagunços poderão ainda passar e ele não estará presente. Zé Matias aparece. O almocreve dá-lhe um chapéu de massa. O café servido. Ao abrir o bornó para fumar, o cangaceiro presenteia meu pai com duas carteiras de cigarro e se queixa que está levando muito dinheiro em moeda. As moedas pesam. Pode o velho Matias trocar esse dinheiro por cédulas? Cinqüenta mil reis, serve. Meu pai dá-lhe vinte mil réis em cédulas e recusa as moedas em troca. 
      O cangaceiro agradece e, com os companheiros, apressa o passo para juntar-se ao bando que já passou.



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