segunda-feira, 27 de março de 2017

(1) UM NOME SEM ROSTO, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

UM NOME SEM ROSTO

pags. 8 a 12

   Os dias, de tão bons, são todos iguais. Tudo é igual nos horizontes de nossa in- fância sem li-mites, tempo claro com chei ro de curral e melaço de engenho. O sítio Olho d’Água do Melão se esconde como um segredo ao pé da serra. Graças a Deus. Lá em cima é que está a estrada que divide o Ceará da Paraíba. Na estrada passam tropas de burros carreando algodão, oiticica, rapadura. Às vezes os burros se espantam e desgarram com o ronco dos primeiros caminhões. Como podem as pessoas na estrada adivinhar que, nessa grota escondida, Deus deixou um pedaço do seu paraíso para os filhos do Mestre Matias?

     A meninada vai abrindo os olhos ao mundo, quase cuidando de não crescer, no medo inconsciente de que o paraíso desapareça e o mundo perca o seu encanto.

     Aos poucos, é verdade, se alongam os idos de 1913, quando o paraiba-no Matias Duarte Passos, já viúvo por quatro anos, encontra a jovem Ange-lina Guedes Rolim – Dosanjo, como passará a ser conhecida – do mais tradicional tronco de Cajazeiras, e com ela constrói a sua segunda família. Uma família que ele vai fazendo crescer com pressa do nordestino. Nesse novembro de 1925, aí já estão Alodias, com onze anos, Maria Virgem, com dez, Stela, com oito, e os meninos Valdemar, com quatro, Francisco, com três, e o caçula, Micena, com menos de dois. E a mulher, grávida de sete meses, está a seu lado para garantir que, com as bênçãos de Deus, terão novo rebento na família entre fevereiro e março de 26.

Esses, os filhos pequenos. Porque D. Dosanjo tem outros “filhos” do primeiro casamento de Matias: Teté, Doiô e Nanã, já se casaram, pois têm quase a mesma idade de Mãe Dosanjo. Em casa estão ainda a Júlia, a mais nova das mulheres, e José Matias, com 21 anos.

   A casa não é tão grande, mas está bem plantada no meio do sítio, de paredes meias com a bolandeira e o engenho. À frente, o amplo pátio que termina na porteira do curral. Da calçada alta se avistam o açude e a vazante. O quintal abre para o baixio, por onde o olho d’água se derrama em córrego.

     E que mundo de fartura! Além do leite, do queijo e da coalhada, temos a rapadura, a batida e o alfenim, mas a cana de açúcar fácil de descascar o rasgar no dente, depois da colheita no eito e quebrada no joelho. A banana babona será a “marca” de Mãe Dosanjo na memória de filhos e netos. Os mais velhos passam horas e mais horas nos mais altos das goiabeiras, as mais férteis goiabeiras de que se tem notícias. Aos pequenos contam histórias encantadoras: o coqueiro do quintal velho também já não sabe o que faz: em vez de botar coco, está dando quiabo, maxixe, cebola, coentro. De outro, mais pro meio do baixio, se diz que está estragado por causa da saparia que tem ao pé: toda vez que a gente vai abrir um coco para beber a água, salta um caçote de dentro dele.

   Esse paraíso infantil tem na pessoa de “Padinho Matias” ou “Meu Mestre”, como é chamado por muitos, aquele que o plantou e que assegura para todos ao redor.

     Mestre Matias é um homem moreno, talhado na média estatura sertaneja, franzino e ágil. Os cabelos partem de um ponto definido na testa e se repartem sobre as orelhas,  para dar destaque ao brilho dos olhos claros. De nada disso eu me lembro, mas ainda hoje ouço dizer que meu pai era muito querido como professor de todos os que sabiam ler no Melão, além de Juiz de Casamentos, nomeado que foi pelo Presidente do Ceará, Antônio Pinto Nogueira Accioly. Enfim, um homem que inspirava paz e serenidade. Par ele também, junto com a mulher e os filhos, os dias eram todos iguais.

     Mas o que  foi isso que meu pai viu lá para o Alto da Aroeira? São dez horas da manhã. Matias está em casa para o almoço, conforme é tradição nestes tempos. Levanta-se para sair. Do alto da calçada vê um boi que está comendo a roça. Não tendo por quem chamar naquele momento, corre ele mesmo a tanger o animal. Mas onde está o caminho da saída? E por que, agora ele se sente, de súbito, mais atordoado que o bicho, uma coisa estranha a fisgá-lo próprio dentro? Meu pai volta para casa quase se arrastando. A dor é enorme. Ele se prosta numa rede e clama por socorro. São muito poucas horas as possibilidades de removê-lo dali, ele ao suportaria ser carregado. Dão-lhe remédios caseiros, fazem-lhes sucessivas massagens. Mestre Matias chama a família. O que mais lastima é deixar a jovem esposa carregada de crianças para criar. É inútil consolá-lo. Ele está consciente do que se passa:
     - Estou me acabando. Deus me receba.
Mas a agonia passa por momento. Ele se senta. Faz algumas recomendações à mulher e abençoa os filhos. Micena, o filho caçula, sem saber o que estado´afazendo, lhe entrega um brinquedinho tosco que tem em suas mãos e coloca as suas mãos dentro das do pai, balbuciando palavras que ainda não sabe articular.
São duas e meia pra três da tarde de terça-feira, 24 de novembro. Meu pai solta o corpo contra rede. Minha mãe sacode:
     - Corram, Matias está morrendo!
     No dia seguinte, é no colo de Alodias, minha irmã mais velha, que vejo pela última vez o rosto de meu pai, no caixão em meio à casa. Quando o enterro sai, eu choro porque vejo os outros chorarem! Mas eu sei que sou um menino de três anos incompletos para quem acabaram os dias bons e iguais. O paraíso acabou.
  Meu pai era um homem de 64 anos, que nunca antes hou-vera se queixado de doença alguma. Do Mestre Matias, tão querido e lembrado por todos, não ficou, porém um único retrato que pudesse guardar para os filhos os traços do seu rosto. Reconstuo pela memória dos irmãos mais velhos a nebulosa lembrança que tenho de sua figura, sem poder fixar na retina um perfil definido de sua pessoa.
     Ao fazer este registro, dou por mim diante de tantos leitores anônimos, contando-lhes os passos marcantes de minha trajetória. Pergunto-me se não estou procedendo assim, numa tentativa inconsciente de compensar para os meus filhos o que meu pai não teve tempo de fazer com os seus.

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